domingo, 21 de março de 2010

O Ministério Público Federal (MPF) desvendou mais um esquema de corrupção arquitetado por prefeituras

Ex-prefeito de Luislândia, município do Norte de Minas Gerais, responde a 17 ações do MPF

O Ministério Público Federal (MPF) em Montes Claros desvendou mais um esquema de corrupção arquitetado por prefeituras e empresários para o desvio de recursos públicos federais. Desta vez, as tramóias teriam contado com a participação de um servidor da Fundação Nacional de Saúde (Funasa) e ocorreram no município norte-mineiro de Luislândia. Sete pessoas foram denunciadas, entre elas o ex-prefeito (foto) – atual vice-prefeito da cidade - Assis Ribeiro de Matos e o servidor da Funasa, o engenheiro civil Antônio Otávio Gontijo.

As fraudes envolveram mais de meio milhão de reais oriundos de dois convênios firmados com a Funasa para a construção de sistemas de abastecimento de água em cinco comunidades rurais de Luislândia. Com uma população estimada em pouco mais de quatro mil habitantes, 56,4 % dela vivendo em situação de pobreza (segundo dados do IBGE), o município padece ainda com os efeitos prolongados da estiagem típica da região. Por sinal, essa teria sido a justificativa apresentada pelo ex-prefeito ao pleitear os recursos da Funasa: fornecimento de água para comunidades rurais que sofrem com a seca.

Os pedidos foram atendidos, os recursos públicos foram entregues ao município, mas nenhuma obra foi feita. O que chama a atenção neste caso é que, além da sempre previsível fraude a licitações supostamente realizadas, a certeza da impunidade levou os denunciados a uma atitude inusitada: o ex-prefeito Assis Ribeiro, ao prestar contas da aplicação do dinheiro liberado pelos convênios, apresentou reservatórios de água que seriam absolutamente discrepantes daqueles previstos nos projetos, inclusive no que diz respeito à localização.

O aprofundamento das investigações, com a oitiva das pessoas envolvidas e a análise de centenas de páginas de documentos, levou o MPF finalmente a descobrir que as obras apresentadas em ambas as prestações de contas referiam-se a reservatórios construídos, na realidade, com recursos da Companhia de Desenvolvimento do Vale do São Francisco (CODEVASF) e do Departamento Nacional de Obras contra a Seca (DNOCS).

Fiscal de si mesmo – Para o sucesso da fraude, foi fundamental a participação do engenheiro civil e servidor da Funasa Antônio Otávio Gontijo. Radicado no município de Sete Lagoas, ele era responsável por fiscalizar a regularidade na aplicação das verbas federais liberadas pela Funasa. De acordo com as denúncias do MPF, Antônio Otávio “notabilizou-se por realizar fiscalizações inconsistentes, emitir laudos de vistoria ideologicamente falsos e por envolver-se em esquemas de corrupção e desvio de recursos públicos federais”. Atualmente, ele se encontra afastado e já responde a ações penais na Justiça Federal em Montes Claros e em Governador Valadares.

Sua parceria com o ex-prefeito de Luislândia data de fins de 1999. Naquela ocasião, Antônio Gontijo elaborou o projeto apresentado pela prefeitura na solicitação do Convênio 1310/2000 e firmou a Anotação de Responsabilidade Técnica da obra, registrada junto ao CREA, figurando assim como responsável técnico pela execução do empreendimento. Apesar disso, ele também viria a ser o fiscal do empreendimento, atuando em nome da Funasa e concorrendo decisivamente para a aprovação do projeto. O mesmo engenheiro foi quem emitiu parecer técnico aprovando suposta modificação do local das obras – exatamente para os locais onde já havia reservatórios de água construídos pela Codevasf.

Nesse convênio, cujo valor era de R$ 111.749,46, o Ministério da Saúde emitiu parecer solicitando a devolução integral dos recursos, “por absoluta falta de execução”. O parecer ainda observou que “o saque de 90% do recurso em menos de 60 dias do crédito” por si só evidenciava a impossibilidade física da execução das obras em tão curto prazo.

Dois anos depois, a Funasa assina novo convênio (641/2002) com o Município de Luislândia, destinando mais 498 mil reais para construção de outros poços de água. Repete-se o esquema anterior: os denunciados associam-se novamente, desviam recursos públicos e o ex-prefeito inclui, na prestação de contas, obras executadas por outros órgãos públicos federais.

De acordo com o MPF, até há poucos meses, ninguém havia percebido que o ex-prefeito estaria ludibriando a Funasa. Quando os engenheiros e fiscais compareciam ao município para vistoriar a execução dos convênios, eram-lhes indicados os locais das obras realizadas por outros entes públicos. Em uma dessas ocasiões, inclusive, os fiscais teriam encontrado máquinas do Dnocs fazendo a perfuração de um dos poços.

Para possibilitar o ardil, o engenheiro da Funasa teve papel preponderante: no primeiro convênio, Antônio Gontijo deu parecer técnico, pela Funasa, aprovando a mudança do local das obras; no segundo, o próprio projeto, maliciosamente aprovado por Antônio Otávio Gontijo, não estabelecia o local exato dos poços tubulares.

Empreiteira “fantasma” – O esquema contou também com a indispensável participação das empresas contratadas pelo município, Halle Construções Ltda e Mural Construções Ltda. A Halle Construções, com sede em Sete Lagoas/MG, era uma empresa de fachada, sem existência efetiva. A Mural Construções, também sediada em Sete Lagoas, pertence ao empresário Marcos José Miranda Oliveira. Ambas as empresas emitiram notas fiscais atestando falsamente a realização das obras e receberam os recursos a elas destinados.

A mesma Mural Construções foi contratada pela prefeitura de Luislândia em outra ocasião, para a construção do sistema de esgoto municipal, também com recursos oriundos da Funasa (R$ 199.653,00). E novamente foi constatada a ocorrência de graves irregularidades, desde a execução incompleta das obras até impropriedades técnicas que acabaram resultando, segundo laudos de vistoria produzidos pela própria Funasa, na total imprestabilidade aos fins a que se destinavam. A empresa, no entanto, emitiu notas fiscais atestando a completa e efetiva realização do projeto. O ex-prefeito Assis Ribeiro, mesmo advertido em diversas oportunidades acerca das irregularidades, realizou todos os pagamentos até esgotar-se a verba do convênio.

Além das empresas, outros personagens de Sete Lagoas, município situado a mais de 600 km de Luislândia, também participaram do esquema. Um deles foi o engenheiro civil Luiz Otávio de Freitas Ribeiro, vizinho de Antônio Otávio Gontijo, que subscreveu, pela Halle Engenharia, o Termo de Entrega da Obra do Convênio 1310/2000, atestando falsamente que todas as etapas tinham sido cumpridas.

Outro engenheiro civil de Sete Lagoas, Geraldo Magela Barbosa Sobrinho, também esteve envolvido. Seria dele a autoria do projeto de construção dos reservatórios que resultou no Convênio 641/2002. No entanto, o MPF acredita que o verdadeiro autor era Antônio Gontijo, eis que “o sistema utilizado para a confecção do projeto hidráulico, criado por ex-engenheiro da Funasa, era utilizado, à época, preponderantemente (senão exclusivamente), pelo corpo técnico da fundação”.

Dezessete processos – Assis Ribeiro de Matos foi prefeito do Município de Luislândia entre 1997 e 2004. De acordo com o MPF, a Funasa teria encontrado irregularidades em absolutamente todos os convênios assinados com o município durante a sua gestão. Atualmente, o ex-prefeito responde a oito denúncias e nove ações de improbidade administrativa ajuizadas pelo Ministério Público Federal perante a Justiça Federal em Montes Claros.

As acusações, como sempre, envolvem desvio e má gestão de recursos destinados pela União para aplicação em áreas diversas: Saúde, Educação, Combate à Fome e saneamento básico. O que se percebe é que, em apenas um ano – 2002 -, o município teria recebido quase um milhão de reais para aplicação em obras de saneamento e para investimento na melhoria e atendimento da população em saúde e em educação, com recursos encaminhados por diversos programas do governo federal (Piso de Atenção Básica, PNAE, Programa de Atenção à Criança, etc.). Em todos os casos, verificou-se que as verbas públicas federais foram desviadas ou mal aplicadas.

O desrespeito à lei de licitações era tão frequente, que, em alguns casos, a obrigatoriedade eram simplesmente ignorada: as compras eram efetuadas diretamente de fornecedores escolhidos pela prefeitura. Por exemplo, entre os anos de 2001 e 2004, houve cinco dispensas indevidas de licitação para utilização dos recursos enviados pelo Programa Recomeço, do Ministério da Educação. E o mesmo aconteceu na compra de medicamentos para a unidade mista de saúde e de gêneros alimentícios para creches e escolas. Segundo relatório produzido pela Controladoria-Geral da União (CGU), além da falta de licitação, os recursos também eram empregados em despesas diversas das previstas em lei e, em alguns casos, não foram encontrados documentos que comprovassem em que o dinheiro teria sido utilizado.

A realização de licitações, contudo, também não garantia a licitude da contratação, porque os processos eram sempre viciados por irregularidades. Esse foi o caso, por exemplo, da contratação da empresa Construal Construtora Almenara Ltda. O procedimento de licitação realizado para dar execução ao convênio 477/2002, que destinou 299 mil reais para a construção de 153 módulos sanitários domiciliares, violou diversas normas da Lei de Licitações. Teria havido, inclusive, favorecimento à empresa vencedora: outras duas licitantes foram inabilitadas porque teriam apresentado garantia em valor inferior ao que previa o edital. A Construtora Almenara, que também apresentou garantia inferior, foi declarada vencedora. E, numa repetição de todos os atos comumente praticados por aquela gestão, parte das obras não foi realizada, embora todos os valores tenham sido religiosamente pagos pela prefeitura.

As penas mínimas de todos os crimes imputados ao ex-prefeito, somadas, ultrapassam os 60 anos de prisão. A condenação nas ações de improbidade, por sua vez, pode levar à perda do cargo que ele porventura estiver exercendo na época da sentença, à perda ou suspensão dos direitos políticos e ao ressarcimento dos danos causados aos cofres públicos.

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